quarta-feira, 29 de maio de 2024

 

Maconha: quanto mais resistirá o proibicionismo?

Congresso de cannabis medicinal expõe o óbvio: está cada vez mais disseminado, entre pesquisadores, cidadãos e até no “mercado”, que o uso da planta traz enormes benefícios para pessoas doentes e saudáveis. Massa crítica conseguirá acelerar o debate?

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Foi realizado na semana passada em São Paulo, no pavilhão de exposições do Center Norte, o 3º Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal. Divididos em eixos temáticos, como medicina, veterinária, negócios e agricultura, os três dias de evento receberam expositores de diversas áreas para defender o avanço da legislação brasileira em favor da liberação do uso social e médico da maconha e seus derivados.

Ao Outra Saúde, Pedro Antonio Pierro Neto, neurocirurgião (CRM-SP 102-283 e o RQ de neurocirurgião 62-363), coordenador médico do Congresso, explica as razões, em suas variadas dimensões, que devem levar o Brasil a quebrar seu paradigma de preconceito e repressão à maconha no momento em que, por exemplo, os Estados Unidos já observam que seu uso cotidiano pela população supera o consumo de álcool.

“Hoje, a cannabis medicinal não é usada apenas para doenças. Tivemos uma quebra de paradigma com as Olimpíadas de Tóquio, em 2021, onde o canabidiol, que é um dos componentes da cannabis, um fitocanabinoide, foi liberado pra uso de atletas olímpicos antes, durante e após as suas provas. A substância deixou de ser considerada doping e o motivo de sua liberação é que serve ao controle da ansiedade e recuperação física”, contou.

Em paralelo às palestras e debates, ocorria no mesmo pavilhão a Feira de Cannabis Medicinal, onde diversas empresas que já investem nesta nascente indústria expunham produtos destinados à saúde e bem estar. Como explica Pierro na entrevista, o Brasil vive a contradição da estigmatização social da planta enquanto seus derivados, como CBD, se tornam um produto de saúde cada vez mais disseminado.

Para ele, as vantagens de sua absorção pela lei, com a consequente criação de toda uma indústria do setor, são evidentes em termos de saúde pública, mais ainda no momento em que o CBD acaba de chegar ao SUS paulista, onde poderá ser receitado para tratamento de três doenças neurológicas. “É conseguir dar a todos os cidadãos o mesmo direito à saúde, como está na Constituição. Saúde é o direito de todos e dever do Estado. O CBD no SUS amplia acesso a tratamentos de saúde, em resumo”, avaliou o médico.

Como se viu no congresso, a pressão pela liberação de CBD para tratamento de outras doenças, como Transtorno do Espectro Autista e epilepsia, é grande. Familiares de pacientes portadores de tais condições marcaram presença no evento e se revelam destacados ativistas da liberação da maconha com fins medicinais, inclusive seu autocultivo, para além da legalização de um mercado que já tem seus líderes em franco processo de desenvolvimento. Segundo dados divulgados pelo próprio Congresso, pelo menos 430 mil pessoas fazem tratamento de saúde com algum derivado de cannabis e calcula-se um potencial de cerca de 7 milhões de pessoas que poderiam se beneficiar de seu uso terapêutico.

Para Pedro Pierro, a liberação da maconha também poderia contribuir para a agricultura brasileira e um uso mais sustentável do solo, em especial em áreas de monocultivo. “(As vantagens são) arrecadação de imposto, a criação de um mercado de commodities, como se vê no agronegócio. Na questão agrária, há ainda a possibilidade de recuperação de solo do cultivo de soja entre as safras. Plantar cannabis ajuda a recuperar o solo e aumentar sua produtividade. Existe todo um potencial de geração de empregos e uma cadeia produtiva na economia. É algo de que o país não poderia abrir mão”, defendeu.

No entanto, não se trata somente de defender um novo nicho de mercado e suas vantagens econômicas. Falar da liberação da maconha é tocar em um ponto nevrálgico da violência social e estatal que marca as relações sociais brasileiras. E os participantes do Congresso sabem disso.  

“Hoje é o ‘PPP’ que mais sofre com a criminalização da cannabis, isto é, o preto, pobre e periférico. Uma vez que se regulamenta a cannabis, tira-se uma parte da pressão de cima dessas pessoas. Hoje tem gente presa por conta de maconha, uma coisa que é vendida na farmácia. A pessoa está presa por quê? Porque faltou uma receita médica? Isso daí é uma injustiça social muito grande”, criticou.

Acostumado a lidar com perseguição ideológica em razão do ativismo antiproibicionista, o neurocirurgião sabe que a confrontação política é e será cada vez mais inevitável. “A indústria da repressão, da segurança vai ter que ser confrontada em algum momento. Mas acreditamos no bom senso, que ao entender o que acontece as pessoas vão ver o melhor caminho, o caminho da redução de danos, da regulamentação e não a repressão”.

Leia a seguir a entrevista completa com Pedro Antonio Pierro Neto.

Pedro Antonio Pierro Neto / divulgação

Que caminhos te levaram à cannabis medicinal e, de alguma maneira, estão por trás da construção deste congresso, num pais que tem uma política repressiva historicamente tão violenta em relação ao uso da maconha?

Eu comecei com uso medicinal da cannabis entre 2012 e 2013, por conta de pacientes que já tinham conhecimento e que, de certa forma, me levaram até esse ecossistema. Nas primeiras regulamentações da Anvisa, em 2014, ela colocava como especialidades prescritoras neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras. Assim, isso me trouxe, naquele momento, a segurança necessária pra ter a experiência que hoje me coloca aqui como curador científico do 3º Congresso Brasileiro da Cannabis Medicinal.

O Congresso surpreende pela sua composição de atores, desde profissionais da medicina e veterinária, professores e pesquisadores, a diversos empresários, dispostos a investir dinheiro no ramo, além de produtos exibidos que vão muito além das doenças com as quais a cannabis medicinal ficou associada nos últimos tempos.

O Congresso acompanha o crescimento do uso da cannabis, não do seu uso recreativo ou social, mas no mundo, independentemente até das regulamentações do país. Por isso nós temos desde palestrantes até expositores do mundo inteiro, principalmente da América Latina.

Hoje, a cannabis medicinal não é usada apenas para doenças. Tivemos uma quebra de paradigma com as Olimpíadas de Tóquio, em 2021, onde o canabidiol, que é um dos componentes da cannabis, um fitocanabinoide, foi liberado pra uso de atletas olímpicos antes, durante e após as suas provas. A substância deixou de ser considerada doping e o motivo de sua liberação é que serve ao controle da ansiedade e recuperação física.

A cannabis medicinal não é mais um produto voltado exclusivamente a pessoas doentes, vale também para pessoas saudáveis. E aí tem uma frase que eu gosto muito: “a cannabis não serve pra tudo, mas pode servir pra todos”. Mas a cannabis é muito mais do que isso. Hoje temos sua utilização tanto para animais, não à toa o Congresso dedicou um dia a todo à veterinária, onde foi discutida a utilização como medicamento, e também na confecção de roupa para pets, coleiras, rações, a fim de fazer o animal ter mais facilidade e prazer em se alimentar.

Portanto, a mobilização pelo avanço da cannabis está em diversas frentes. Dentro do Congresso tivemos salas voltadas ao agronegócio, ao aspecto legislativo, e por isso nós tivemos convidados da Embrapa, da diretoria da Anvisa, do Ministério do Empreendedorismo, deputados estaduais e federais, representantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário inseridos nesse Congresso.

É interessante essa parte da participação institucional do Estado brasileiro, atravessado por interesses ultraconservadores que estigmatizam o consumo de maconha e fazem disso um grande capital político-eleitoral. Como analisa esse aspecto num momento onde vemos o Congresso, mais especificamente no Senado, avançar numa legislação ainda mais repressiva para o usuário, enquanto o STF tenta relaxar a repressão ao menos na dimensão do consumo?

A nossa ideia é justamente sair dessa questão ideológica. A doença não é uma ideologia, as pessoas ficam doentes, de direita, de esquerda, ricas, pobres, protestantes, católicos, umbandistas. Não é um aspecto religioso, não é um aspecto ideológico, não é um aspecto político. Tentamos manter uma distância, porque a planta é a mesma, mas são pautas diferentes. O uso adulto da planta, para fins medicinais ou de negócios, parte da questão do uso mais social da planta.

Quando pensamos na autorização e na liberação do uso vaporizado da cannabis, alguns aspectos precisam ser descritos antes. Tipo, quem planta, quem vende, aonde vende, quem consome, aonde consome. Enquanto tudo isso ainda não estiver esclarecido, é difícil ter uma opinião formada sobre a autorização do uso social da planta. Mas quando falamos do uso médico e do uso industrial, não entramos nessa seara.

Inclusive, a maior parte das plantas que se utilizam para isso são de baixo teor de THC. O THC é o que dá o efeito psicoativo da planta, quando as pessoas fumam maconha, elas estão em busca do THC. O THC pode ser usado do ponto de vista médico, tem suas indicações, mas a maior parte dos remédios é feita com outro canabinoide, o CBD.

E há plantas com um nível muito baixo de THC, que não teria finalidade nenhuma para o uso adulto, que é o cânhamo industrial. Esse é o nosso principal foco em debater por que essa planta não pode ser usada para fins sociais e cultivada no Brasil, para que as pessoas tenham mais acesso a remédios e economizem algum dinheiro.

E como enxerga os debates da maconha medicinal no campo médico-científico neste momento?

Tem um preconceito muito grande. Toda hora aparece alguma organização que vai contra o avanço das pesquisas no mundo. Isso é uma coisa muito ruim. O Brasil é o celeiro do mundo. Como escreveu Pero Vaz de Caminha, na primeira carta registrada da história do país, nessa terra tudo que se planta, dá. E nós compramos insumos de fora do país.

A primeira pesquisa no mundo feita sobre a utilização de canabidiol na epilepsia é do Brasil, da década de 80. Hoje nós temos um dos maiores pesquisadores do mundo de canabinoides, o professor José Alexandre Crippa, da USP de Ribeirão Preto. Seu grupo é um dos que mais produzem artigos científicos de canabidiol no mundo.

Agora, estamos entrando no SUS aqui, em especial em SP, onde os primeiros produtos de CBD para tratar determinadas doenças acabam de chegar às mãos da secretaria de saúde.

Enfim, o Congresso da Cannabis traz todas essas pautas para serem discutidas, onde devem ser discutidas, que é no ambiente científico, um ambiente aberto a todas as opiniões.

E no campo da saúde pública, especificamente, quais seriam os ganhos do avanço dos CBDs, do uso deles no SUS?

Acesso. É conseguir dar a todos os cidadãos o mesmo direito à saúde, como está na Constituição. Saúde é o direito de todos e dever do Estado. O CBD no SUS amplia acesso a tratamentos de saúde, em resumo.

E no campo econômico, como é que você, em linhas gerais, quais seriam as vantagens para o Brasil?

Arrecadação de imposto, a criação de um mercado de commodities, como se vê no agronegócio. Na questão agrária, há ainda a possibilidade de recuperação de solo do cultivo de soja entre as safras. Plantar cannabis ajuda a recuperar o solo e aumentar sua produtividade. Existe todo um potencial de geração de empregos e uma cadeia produtiva na economia. É algo de que o país não poderia abrir mão.

No campo internacional, que países você vê mais à frente nesse sentido?

Os Estados Unidos já liberaram seu uso e produção medicinal em vários estados, Alemanha e Uruguai são dois países que avançaram recentemente. O mundo caminha para isso e o Brasil vai em passos lentos, mas estamos indo, estamos andando. Espero que este nosso Congresso impulsione um pouco mais esse debate.

Vocês consideram que uma maior aceitação social da maconha é vetor de diminuição da violência social, em especial aquela associada à “guerra às drogas”?

Hoje eu vi uma frase do coordenador veterinário do congresso, o professor doutor Eric Amazonas, um grande amigo, que usou uma linda frase: “no Brasil nós não abolimos a escravidão, nós libertamos os escravos”. São coisas bem diferentes.

Hoje é o “PPP” que mais sofre com a criminalização da cannabis, isto é, o preto, pobre e periférico. Uma vez que se regulamenta a cannabis, tira-se uma parte da pressão de cima dessas pessoas. Hoje tem gente presa por conta de maconha, uma coisa que é vendida na farmácia. A pessoa está presa por quê? Porque faltou uma receita médica? Isso daí é uma injustiça social muito grande.

No entanto, parece impossível falar de avançar com a legalização da maconha e seus diversos usos sem enfrentar poderosos grupos de interesses políticos e mesmo econômicos, como a indústria da segurança, das armas…

São as “dores do crescimento”. Não tem como evitar. A indústria da repressão, da segurança vai ter que ser confrontada em algum momento. Mas acreditamos no bom senso, que ao entender o que acontece as pessoas vão ver o melhor caminho, o caminho da redução de danos, da regulamentação e não a repressão.



 

Brasil: para deixar o labirinto do desemprego

País naturalizou a desocupação e a precariedade. Mas há alternativa: rejeitar a condição subalterna; colocar as novas tecnologias a serviço das maiorias — em especial da Economia Solidária. Outras Palavras abre investigação sobre o tema


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Por Ricardo T. Neder, Rafael Grohman, Joaquim Melo, Camila Capacle, Letícia P. Masson, Julice Salvagni, Flávio Chedid, Aline Os, Antonio S. Cangiano, Roberto Moraes, Celso A. Alvear eDaniel Santini

Título original:
Para sair do labirinto do desemprego no Brasil: autogestão do trabalho com plataforma digital como base da Economia Popular e Solidária1

O golpe de 2016 atingiu políticas de emprego, salário e relações trabalhistas. Os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) cortaram mecanismos de proteção social e restringiram direitos. Agravaram uma crise que é econômica e bastante concreta, mas também simbólica pois o desemprego assumiu uma normalidade bizarra, em meio a uma crise de esperança na qual as condições precárias foram naturalizadas e dadas como certa.

O movimento sindical, os movimentos sociais e a sociedade civil vão dar a volta por cima e conseguir elaborar alternativas e construir caminhos para o Brasil? O momento pede não apenas regulamentação das novas formas de trabalho, mas sobretudo uma abordagem propositiva. É preciso projetação para a defesa de formas de organização do trabalho que integrem políticas ativas de geração de trabalho qualificado, renda e ocupação digna na economia popular rural e urbana.

Trata-se da incorporação das transições para relações mediadas por plataforma digital, combinadas com políticas de qualificação e renda mediante uma economia que resulte em impactos positivos profundos, tanto em termos ambientais quanto de inclusão social.

Estas transições e novos modelos podem ser construídos mediante a união de forças do movimento sindical e dos movimentos sociais em diálogo com diferentes níveis de governo. Devem ser seus principais protagonistas, pois têm a legitimidade para dar direcionamento de longo prazo e cobrar políticas de estímulo ao que chamamos de Economia Solidária 2.02. Ou seja, incentivar o uso de tecnologia para, a partir do acúmulo histórico que o Brasil tem na Economia Solidária, fomentar novos modelos de cooperação e organização econômica pensados não apenas a partir do lucro. Políticas como, para citar um exemplo, o fortalecimento das inversões mediante compras públicas em organizações produtivas populares (OPPs). Platraforma digital não é um santo milagreiro, mas ajuda!

Mais do que isto, defendemos aqui o aumento da capacidade de projetarmos modelos alternativos e colaborativos de redes com estruturas sociais e digitais coletivas que levem à criação de valor fora do ambiente das gigantes e predatórias corporações de tecnologia. Nesses espaços, híbridos de estruturas sociais e digitais coletivos, vários elementos podem ser inseridos para além das plataformas digitais coletivas (moradia, educação, qualificação, cultura, transferências sociais; acesso a crédito e assessoria sociotécnica para circuitos populares da economia, etc).

Esse tipo de apoio só pode prosperar se as cooperativas, associações e coletivos de economia solidária foram reconhecidas como atores legítimos, recebendo incentivos e estímulo para avançar com projetos alternativos. A economia solidaria não pode ser encarada como periferica, local, ou invisivel no contexto do desenvolvimento economico e tecnologico de um pais – como defendem Veronica Gago e colegas em livro recente.

Para elaborar e construir soluções são necessários modos de interação e gestão compartilhada entre movimentos sociais com suas demandas populares e desenvolvedores de software livre para Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Articular tais segmentos é o desafio para o desenvolvimento de algoritmos com protagonismo social em projetos capazes de operar em favor do bem público – esse é o melhor caminho para garantir a soberania digital e avançar com empreendimentos econômicos solidários no Brasil.

Ampliar espaço para organização coletiva

As OPPS demandam uma reforma oficial ousada e adequada com titulação fiscal, creditícia, securitária, previdenciária e trabalhista a exemplo do E-SOCIAL (modelo avançado desenvolvido no governo Lula 2 pelos técnicos da empresa pública SERPRO que reúne escrituração digital das obrigações fiscais, previdenciárias e trabalhistas para as relações entre empregados e empregadores domésticos).

Por que não seria viável um modelo do tipo E-ECOPOPSOL semelhante ao E-SOCIAL para reconhecer oficialmente o que de fato, já ocorre? Que é a existência de milhões destas OPPs como categoria própria de organização econômica (que seriam oficialmente separadas da camada de 5,5 milhões de PMEs – Pequena e Micro Empresas) nos variados circuitos populares da economia que abarcam desde agricultores e assentados da reforma agrária, trabalhadores da reciclagem, alimentação, têxtil e vestuário, pequena e micro-industrias, oficinas de todos os tipos, até os entregadores e motoristas sob plataformas de trabalho, hoje foco de atenção exclusiva do GT criado pelo governo para debater o tema. Por que não criar condições e abrir espaço para pequenos coletivos de trabalhadores e trabalhadores, hoje atuando na informalidade, poderem se formalizar e fazer parte do ecossistema nacional de cooperativas nacional? Ou a política nacional deve beneficiar apenas cooperativas gigantes, como as de crédito?

O cenário do trabalho no mundo mudou e segue mudando com velocidade. Tendências recentes apontam que as plataformas de trabalho remoto configuram uma das características contemporâneas da reestruturação do capitalismo. Gigantes transnacionais como Microsoft, Amazon, Meta/Facebook e as antigas Basf, Syngenta e Bayer apresentam em comum investimentos estratégicos para tornar as plataformas digitais elementos centrais na reestruturação do mundo do trabalho em todos os segmentos produtivos e de serviços ondem atuam, no campo e nas cidades. As tecnologias emergentes reunidas nas Plataformas Digitais (PDs) têm aumentado, progressivamente, o seu peso na economia das nações, mas não no número de pessoas envolvidas. Em 2016, nos EUA, o setor de tecnologia possuía apenas 6,8% do valor agregado das empresas e 2,5% da força laboral. Mesmo no relativamente desindustrializado EUA, o setor de tecnologia emprega quatro vezes menos que a indústria. No Reino Unido, quase três vezes menos empregados que na produção industrial. Em suma, as tecnologias emergentes têm uma enorme e veloz tendência de produzir de forma simultânea explosão, exclusão e aumento da competitividade no sistema [10].Os oligopólios também estão concentrados em termos espaciais (MORAES, 2020).

Metade (49) da lista total das Top 100 (FT) estão localizadas nos EUA; outras 24 na China e outras 27 espalhadas pela Europa e Ásia. Dentro desse sistema hegemonicamente financeiro e tecnológico (dois setores com bens e fluxos intangíveis que se encontram), a América Latina se torna ainda mais periferia, vendo a sua dependência se ampliar em termos de infraestruturas tecnológicas, como consumidora de pacotes que controlam seu imenso e desejado mercado. O que mostra os impactos do gigantismo do setor de tecnologia e seus espaços no território, para além da centralização setorial que o uso expandido das Plataformas Digitais deixa evidente (MORAES, 20203).

Sabemos que há estudos co-relacionando tendências de posicionamento político e visão de mundo decorrentes da radicalização de modelos de negócios baseados no acirramento da competição, do livre mercado e de um tipo de empreendedorismo profundamente individualista com resultados que apontam que o discurso conservador é causa e consequência do capitalismo de plataforma que opera sob a batuta do neoliberalismo desde abajo, manipulando novas dinâmicas sociais estruturadas no vácuo de proteção social deixado pelo Estado4. As centrais sindicais têm participação assegurada nesse processo de ampliação dos direitos sociais para pessoal dentro e fora dos contratos de trabalho, pois a transição tecnológica reúne várias camadas de trabalhadore/as – todos e todas sob uma mesma plataforma não importa se tem relação trabalhista ou não5. Empresas públicas como o SERPRO e DATAPREV (que implantaram o E-SOCIAL no segundo governo Lula) poderão ser os laboratórios de protótipos.

A necessidade de imaginar

Por estas e outras razões o movimento trabalhista depara-se com uma esfinge que pode devorá-lo se não situar o mundo do trabalho centralmente nas estratégias de desenvolvimento econômico, socioambiental e do uso das plataformas para gerar e distribuir trabalho e renda. Seja no campo, seja nas cidades, em atividades formais ou nos circuitos populares da economia, em todos os segmentos que envolvem trabalho dá-se o mesmo fenômeno: a reprodução social das famílias não tem como ser equacionada no Brasil sem políticas públicas adequadas.

É preciso ousar, imaginar, construir caminhos alternativos. Os governos têm o dever de garantir espaço para essa nova Economia Solidária 2.0 florescer. Movimentos sociais e sindicatos têm a oportunidade de criar e avançar com novas formas de organização social e econômica. Não preencher esse espaço é arriscado, o poder não aceita vácuo.

Quando deixadas sob a hegemonia do Capital, esta reprodução social fratura a sociedade e a economia, com empresas e governo operando sob a forma de assalariamento, e a partir de 2016 de forma intensa como acesso ao trabalho remunerado temporário. O andar de cima coloniza e extrai valores dos circuitos populares da economia recorrendo ora ao trabalho precarizado sob diferentes modalidades, ora ainda por meio das relações de base familiar e comunitária que garantem o mínimo, básico para a sobrevivência.

Em períodos de crise dos circuitos empresariais e dos investimentos do Estado, como o que o Brasil atravessou de 2019 a 2022, os circuitos populares da economia perdem suas reservas de autoproteção e aumenta vertiginosamente o risco de fome e miséria. Os indicadores sociais e econômicos são a expressão de uma crise de múltiplas dimensões.

Uma delas atende pelo nome de precarização das relações trabalhistas e sua face relacionada às estratégias empresariais de impor um modelo de negócio – o do trabalho remoto mediante plataformas digitais ao vasto contingente de pessoas que dependem das trocas nos circuitos populares da economia.

Estas plataformas são controladas quase na sua totalidade por corporações e empresários, que se aproveitaram da desorganização do metabolismo social, devido a uma gestão de governo que vitimou milhares de trabalhadore/as e familiares, afetando sobretudo o tecido social das camadas mais pobres. No mundo do trabalho deu-se em paralelo o aprofundamento do desemprego e da subocupação com a desregulamentação trabalhista promovida com o lobby de grandes empresas.

A ausência de governo e a retirada de cena dos mecanismos de mediação com a extinção do Ministério do Trabalho e o da Previdência – provocaram a vácuo necessário aos empresários para turbinar o capitalismo de plataforma.

Dados preliminares estimam em 2,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras foram atraídos e subordinados a um modelo de negócios fundamentado na precarização e desregulamentação, cujo gerenciamento se tornou viável devido aos dispositivos orientados pela tecnologia de algoritmos opacos e literalmente nas “nuvens” que serve como verniz tecnológico para reativação de práticas de exploração há muito superadas.

A crise econômica já existente no país no período pré-pandemia foi agravada pela necessidade de isolamento social, gerando maior desemprego, de modo que o trabalhadores passaram a ser obrigados a buscar trabalho, seja através da clássica informalidade, ou como novos “servidores” do trabalho de plataformas a partir de empresasPara explicitar essas questões é necessário ampliar e focalizar algumas linhas de atuação estratégicas. É o que propomos neste texto inicial, um convite para pensar problemas e imaginar alternativas.

Esta serie de artigos está organizada em oito partes:

1. Plataformismo: outra etapa do Modo de Produção capitalista?

A revisão das tendências econômicas, jurídicas, psicossociais, culturais e sociológicas da penetração do capitalismo de plataforma no Brasil para identificar sua relação com as lógicas de exclusão e de inclusão produtiva e atividades econômicas de contingentes consideráveis da PIA (População em Idade Ativa)

2. Uma proposta de política economia popular e solidária começa pelo mapeamento e cartografia

Realizar pesquisa nacional sobre cooperativismo de plataforma, identificando especificidades regionais e tipologias de experiências que utilizam as plataformas digitais para alavancar projetos cooperativos. A partir dessa pesquisa promover encontros entre as iniciativas mapeadas, poder público, instituições da sociedade civil, movimentos sindicais e pesquisadores da temática com intuito de construir políticas públicas voltadas para o setor entre produtores e consumidores, associados e gestores de associações e cooperativas solidárias

3. Se não trabalho me matam, se trabalho me acabo! (direito e saúde dos trabalhadores de Plataforma).

Em parceria com a Fiocruz, que há anos estuda os efeitos na saúde dos trabalhadores de plataforma, promover debates sobre esse tema com pesquisadores e atores sociais afetados pelo plataformismo.

4. Centrais sindicais, sindicatos e Confederações podem assumir as lutas dos movimentos pela Economia Popular e Solidária?
Com as centrais sindicais e a Unisol Brasil, promover seminários para discutir a incorporação das pautas relacionadas aos direitos dos trabalhadores de plataforma nas lutas sindicais.

5. A luta dos movimentos sociais pela construção da visibilidade da Economia Popular e Solidária

Como chegar ao cooperativismo solidário de plataforma: Como resultado do mapeamento nacional de cooperativismo de plataforma, promover encontro com as cooperativas/associações mapeadas para disuctir os resultados encontrar e encaminhar propostas de política pública para o setor.

6. Políticas públicas para Eco Pop e Ecosol: como criar uma estratégia a partir da plataforma digital

Incorporar os gestores públicos no debate com os movimentos sociais e sindicais para elaborar propostas participativas de programas voltados para o cooperativismo de plataforma

7. Software livre para apoio à gestão de empreendimentos da economia solidária

Em parceria com a cooperativa EITA, que atua com desenvolvimento de software livre para movimentos sociais, desenvolver uma ferramenta para facilitar a gestão de cooperativas

8. De volta ao princípio: crédito e financiamento para alavancagem da Economia Popular e Solidária?

Financeirização das experiências associativas e de cooperativismo solidário em plataformas: Com apoio do Banco Palmas, promover troca de experiencias sobre capilarização do crédito e da renda mediante ferramentas digitais via bancos comunitários de desenvolvimento local

1Apoio CNPq Chamada nº 40/2022 – Linha 4B – Projetos em Rede – Políticas públicas para a inovação e para o desenvolvimento econômico sustentável. Pro-Humanidades 2022 – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. (proc. 4208772/2022-1).

2Celso Alvear. Ricardo Neder e Daniel Santini. – “Economia Solidaria 2.0: por um cooperativismo de plataforma solidário”. Disponível em: https://revista.ibict.br/p2p/article/view/6268

3. Roberto Moraes, “Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma”. Revista Comciencia – 16 set 2020.

4 Fernanda Canofre. “Trabalho por app pode estar empurrando pessoas para a direita, diz antropóloga”. Folha de S. Paulo, 21 março 2022.. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/trabalho-por-app-pode-estar-empurrandopessoas-para-a-direita-diz-antropologa.shtml. Acesso em 26 jul. 2022

5 Clemente Ganz Lucio. “Transformações no mundo do trabalho exigem respostas inovadoras”.Poder 360. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/transformacoes-no-mundodo-trabalho-exigem-respostas-inovadoras-escreve-clemente-ganz-lucio. Acesso em: 20 mar 2023

   

 

Clima: O Estado em tempo de insegurança crônica

Emergências socioambientais levam à desorientação cognitiva e emocional coletiva. Ações solidárias da sociedade civil são muito importantes, mas tendem a se diluir com o tempo. Prevenir catástrofes exige um Estado que ouse enfrentar o poder do grande capital

Foto: Matheus Pé / Especial GZH
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Cidades inteiras debaixo d’água. Uma imensidão de escuro e silêncio. Um cheiro de esgoto que não é de casa, que é de lixo. Gritos de desespero, pedidos de socorro. Uma pausa em tudo o que antes era rotina. O aeroporto está alagado, os ônibus e o metrô de superfície (Trensurb) não rodam mais. Até alguns hospitais fecharam. Não é enchente de água somente, é de barro, que gruda e destrói o que estiver no caminho. É uma lama que não poupa ninguém, mas que fere mais quem é vulnerável, atestando a pertinência do termo racismo ambiental: os mais atingidos são os pobres e vulneráveis, e dentre eles o percentual de negros e negras é maior. É o desespero de não ter pra onde ir, de contar com a casa do parente ou amigo, de buscar um abrigo seguro e seco. E são muitos os acolhidos nos abrigos, aos milhares. O abrigo é a casa de passagem, mas constitui um tempo que demora a passar, é um não-lugar. Para Augé (2000) os lugares têm características identitária, relacional e histórica. Seja no espaço privado da casa, seja nos espaços públicos de uso coletivo, os lugares ajudam a compor os sujeitos sociais, em um conjunto simbólico e concreto de possibilidades de ser e estar. Perder a referência de casa e dos locais comuns, portanto, é perder-se também de si.

Diante de toda essa tragédia, que tamanho um Estado deve ter para conseguir amparar os cidadãos frente a uma catástrofe sem precedentes? O Rio Grande do Sul vive possivelmente o momento mais dramático da sua história. Maio de 2024 está sendo marcado por uma enchente de proporções gigantescas, capaz de colocar o estado inteiro em situação de calamidade pública. Neste sentido, vemos que a organização da sociedade civil, composta por movimentos sociais, associações, sindicatos ou coletivos informais, tem sido fundamental. Por outro lado, todas essas iniciativas seriam insuficientes, se não fossem subsidiadas por políticas públicas, sobretudo de âmbito federal.

É correto afirmar que ‘o povo fazendo pelo povo’ tem não só demonstrado a ausência das políticas, como também tem comprovado a potência das massas organizadas. No entanto, depender da boa vontade de voluntários e de doações não é o bastante para garantir que a população, sobretudo mais vulnerável, consiga se restabelecer. Mais do que isso, devem partir da iniciativa pública as obras de infraestrutura e as políticas de prevenção capazes de impedir que isso volte a acontecer nessas proporções. Ou seja, a ausência de um Estado suficientemente capaz de amparar populações desassistidas significa a permanência dos sintomas sociais de insegurança em caráter crônico.

No ano de 2003, a cientista política Céli Pinto, da UFRGS, durante uma palestra, falava sobre os 10 anos da campanha da Ação da Cidadania, a “campanha do Betinho”. A despeito dos vários aspectos positivos, de mobilização da participação cidadã, da criação de agenda pública sobre o problema da fome, após 10 anos da benemerência da sociedade civil, o fim do problema não havia sido alcançado através dessa mobilização de atores individuais e grupais. Ou seja, seria necessário que o Estado enfrentasse efetivamente o problema, como estava fazendo o recém criado programa Fome Zero. O Estado tem orçamento, tem uma burocracia – um corpo funcional treinado e preparado – para capilarizar as políticas públicas de modo coordenado e organizado, a despeito da discricionariedade dos chamados “burocratas de nível de rua”, aqueles/as que estão lá na ponta, fazendo a política chegar às comunidades, grupos, famílias e indivíduos necessitados.

Nesses 20 anos que nos separam da argumentação da professora Céli, suas palavras se mostraram precisas: o que realmente diminuiu a fome de forma massiva, a ponto de tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, foi a ação estatal. Quando esta reflui, a partir da crise econômica em 2015 e dos governos irresponsáveis e privatistas do período 2017-2022, em 2022 o Brasil volta ao Mapa da Fome, segundo a ONU. O percentual de brasileiros em insegurança alimentar estava novamente acima da média mundial. Mais de 33 milhões de brasileiros passavam fome todo dia. Trata-se, assim, de demandas sociais em uma escala massiva que a sociedade civil, por mais que se esforce e tenha boa vontade, não consegue dar conta.

O próprio Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que tem protagonizado uma ação nacional das Cozinhas Solidárias, o faz na intenção de que esse projeto se institua enquanto política pública, pensando na criação da agenda. A propósito, já foi aprovado o projeto de lei nº 491/2023, que cria a Política Nacional de Cozinhas Solidárias, proposto pelo deputado federal Guilherme Boulos, que é líder do MTST. Essa estratégia demonstra a intenção do próprio movimento de instituir formalmente o programa enquanto uma ação do Estado.

Ao fazer referência às ações do Estado, especificamente ao caso atual, das enchentes que acometeram o RS, dentre as principais medidas anunciadas pelo governo, destacam-se as seguintes:

Em sete de maio, através do Decreto Legislativo nº 36/2024, foi reconhecido pelo governo federal o estado de calamidade pública decorrente dos eventos climáticos no Rio Grande do Sul. Com isso, foram previstas algumas medidas, como a União não computar as despesas autorizadas por meio de crédito extraordinário e as renúncias fiscais para o enfrentamento da calamidade. Na mesma data, o Decreto nº 12.106/2024 dispensou o intervalo mínimo para novo saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em situações de calamidade pública. Esta foi a primeira medida federal voltada à facilitação de acesso da população à recursos em um momento de necessidade, e foi complementada, em 15 de maio, pelo Decreto nº 12.019, que dispensou a documentação comprobatória para o saque do FGTS em situações de calamidade pública.

Não obstante, a Medida Provisória nº 1.219, de 15 de maio de 2024, instituiu o Apoio Financeiro às famílias desalojadas e desabrigadas, consistindo em um pagamento de R$5.100,00 por família elegível. Para o apoio às pequenas empresas, a Medida Provisória nº 1.216, de 9 de maio, autorizou a concessão de subvenção econômica a mutuários que tiveram perdas materiais nas áreas afetadas pelo desastre, e a facilitação do acesso à crédito, visando compartilhar os custos com as pessoas jurídicas.

Quanto ao governo estadual e aos municípios afetados pela tragédia, as políticas vêm sendo voltadas ao crédito público, flexibilização da dívida pública e das regras para licitações e apoio financeiro. A Medida Provisória nº 1.218, de 11 de maio, abriu crédito extraordinário em operações nas áreas de agropecuária sustentável, educação, segurança pública, saúde, transporte, trabalho, alimentação, defesa, assistência social e gestão de riscos e desastres. Entre os valores, destacam-se os recursos previstos para a subvenção econômica a micro e pequenas empresas, conforme a Medida Provisória nº 1.216, também a subvenção econômica para operações do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e investimento rural e agroindustrial, e recursos para ações de proteção e defesa civil, incluindo o emprego das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança Pública. A saúde também conta com grande parte dos valores, para o atendimento de demandas farmacêuticas e para atenção à saúde em procedimentos de atenção primária, assim como para procedimentos em média e alta complexidade. Por fim, ressalta-se o crédito disponível para a recuperação e restauração das rodovias federais e para o pagamento do seguro-desemprego.

O pagamento da dívida pública pôde ser postergado conforme a Lei Complementar nº 206, de 16 de maio, sendo reconhecida a dificuldade enfrentada em meio à calamidade pública. Os montantes postergados deverão ser direcionados a planos de investimento em ações de enfrentamento e mitigação de danos. A excepcionalidade também é observada na necessidade de aquisições, em caráter de urgência; portanto, a Medida Provisória nº 1.221, de 17 de maio, dispôs sobre a flexibilização para a aquisição de bens e a contratação de obras e serviços para esse enfrentamento. Finalmente, em 21 de maio, a Medida Provisória nº 1.222 previu a prestação de apoio financeiro aos municípios afetados pelas enchentes, em destinações de recursos que ainda deverão ser observadas.

Visando ao planejamento e à coordenação das ações federais, assim como a uma articulação entre ministérios e órgãos, interlocução com a sociedade civil e promoção de estudos técnicos especializados, em 15 de maio foi aprovada a Medida Provisória nº 1.220, que criou a Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul. As casas legislativas são relativamente atuantes, principalmente através daqueles/as parlamentares identificados com as causas populares.

As iniciativas da sociedade civil são inúmeras, muitas em articulação com as governamentais, nos três níveis (federal, estadual e municipal), outras totalmente independentes. Universidades abriram suas portas para criar abrigos, em diálogo com as prefeituras; igrejas, clubes e casas viraram centros de recepção, triagem e envio de doações. Caminhões e carros vieram de todo o Brasil, trazendo voluntários e doações; a empresa pública Correios transportava toneladas de doações, sem custo aos remetentes. Um mapeamento das iniciativas cidadãs hoje seria de enorme complexidade, tal a abrangência que a solidariedade tomou, atuando em várias frentes, do resgate de pessoas e animais à abrigagem, alimentação e demais cuidados. Acontece que esta mobilização tende a diminuir com o tempo e não atinge a escala necessária para o amparo/assistência social de uma população inteira, e muito menos para a reconstrução de um estado devastado.

Para explicar de forma mais clara o caráter social e múltiplo da economia, utilizamos o aporte do economista húngaro Karl Polanyi (1886-1964), que mostrava a dimensão plural do fenômeno socioeconômico, abordando-o em pelo menos quatro vertentes complementares:

Fonte: Gaiger, 2016.

Os princípios são os de redistribuição (o Estado coleta e redistribui recursos, seja em serviços, seja em valores diretos, viabilizando a vida coletiva em sociedades desiguais), de reciprocidade (filantropia, associativismo, cooperativismo popular, solidariedades várias), de domesticidade (economia doméstica, ajuda intra e entre famílias, mutirões comunitários etc.) e de troca mercantil (mercado/lucro). O problema foi que, modernamente, com a “grande transformação” do mundo feudal para o mundo industrial-capitalista, a economia de mercado assume vida própria e domina a totalidade da vida social, perdendo-se de vista essa pluralidade de princípios e práticas que cada um envolve (STIGLITZ, 2012).

As enchentes e suas trágicas consequências, justamente, nos mostram esses princípios em ação. Deixaram bem claro quem pode fazer o maior volume de aportes necessários, pelas razões já citadas através da professora Céli Pinto no início deste texto: a redistribuição estatal e seu orçamento de grande porte cuja função precípua é o bem estar social. A função precípua da empresa privada é gerar lucro aos proprietários ou acionistas; se diminuir o bem estar social faz o lucro crescer, torna-se ético na lógica puramente mercantil, que obedece à lógica do lucro e da acumulação, às leis do valor. Para que o primado dos interesses privados de acumulação adquirisse legitimidade social, foi necessário difundir a ideia do Estado como ‘pesado’, ineficaz, lento e corrupto. Casos de corrupção de grandes corporações raramente são tratados nas mídias com a mesma espetacularização que casos de corrupção governamentais (lembrando: governos são ocupantes das estruturas do Estado por sistema eletivo, não são o próprio Estado). A enchente de 24 demonstra claramente os argumentos de Polanyi e de Céli Pinto, na prática.

A catástrofe que estamos vivendo no Rio Grande do Sul tem proporções suficientes para causar uma variação nas nossas premissas de tempo e espaço, para o bem e para o mal. Isso porque o lugar que era seco, protegido e seguro, agora se mostrou passível de ser inundado, se perder, se desfazer em minutos. O tempo, que era cronológico, e aparentemente natural, se tornou paralisado, deslocado e fez a vida ‘pausar’ num vácuo. De tudo, o que estava estático se transformou em uma emergente situação de insegurança, que a nossa geração não vai conseguir esquecer. Nossos parentes mais velhos nos contavam sobre a famosa ‘enchente de 41’. Nós contaremos aos mais jovens sobre a enchente de 24, com a diferença que, 80 anos depois, enfrentamos o risco real das alterações climáticas pela ação humana.

Para o sociólogo britânico Anthony Giddens (2002) a segurança ontológica é gerada nas pessoas quando se sentem seguras num sentido contínuo e estável. Seria a possibilidade de crer na continuidade de nossas auto-identidades, na constância dos ambientes sociais e materiais em que vivemos, um senso de confiança nas pessoas e coisas ao redor. O autor faz uma interpretação sociológica da presença do sentimento de insegurança, referindo que o tempo passa a “ser entendido como uma série de momentos descontínuos separando as experiências prévias das subsequentes de tal maneira que nenhuma ‘narrativa’ contínua possa ser sustentada”.

Ele mostra como a noção de tempo vai se alterando de acordo com as vivências ou as posições de cada sujeito no mundo, produzindo diferentes significados e sensações. A emergência dos problemas socioambientais, que passa a ganhar ainda mais concretude, se consolida, portanto, em mais uma insegurança ao contexto brasileiro. Giddens (2002) também faz referência à descontinuidade na experiência temporal que é característica de múltiplos sentimentos. Para ele o tempo passa a ficar ‘vazio’, o que é um modo de ser que consegue a proeza de relacionar o passado e o futuro. A catástrofe que estamos vivendo no RS será vista como um marco, simbolizando o que a água levou, e o que depois disso pode – ou não – ser refeito. A dicotomia que estabelece uma noção entre segurança ou risco depende de “conjunções historicamente únicas nas condições da modernidade”. Assim, novos cenários inseguros, tanto locais quanto globais, são criados por mecanismos de desencaixe, como os perigos ambientais, que hoje ameaçam os ecossistemas como um todo, gerando uma desorientação cognitiva e emocional. Entretanto, nos territórios desprotegidos ou desalentados, esses efeitos da insegurança tendem a ser mais expressivos.

Importa destacar que os efeitos desta crise ambiental também são efeitos do capitalismo. Harvey (2019) enfatiza que o modo como estamos tratando a natureza é altamente contestado e que essa questão “não pode ser abordada independentemente da compreensão do funcionamento da circulação e expansão do capital”. O Estado deve assumir, portanto, uma função de controlar, averiguar e mitigar os efeitos predatórios das cadeias produtivas. O autor ainda afirma que quando uma parte significativa da população “expressa o desejo de estabelecer uma relação diferente com a natureza […] o processo geral de acumulação de capital pode ser forçado a seguir caminhos alternativos”. Ou seja, a função estatal também deve intervir na prevenção das catástrofes climáticas, mesmo que isso implique em uma mudança radical das formas privadas de produção. Neste caso, ainda que a opinião dos cidadãos (aqui considerados clientes) possa ser uma preocupação dos capitalistas, as ações regulatórias (e punitivas) aos predadores ambientais tendem a ser mais efetivas quando protagonizadas por órgãos do Estado. Nesse contexto, um ‘Estado mínimo’, é também um Estado omisso em relação às regulamentações ambientais emergentes. Um Estado responsável deve ter medidas claras para atenuação dos problemas socioambientais, sobretudo responsabilizando as empresas.

O Estado precisa ser democrático e submetido ao controle social dos cidadãos e cidadãs; mas ao mesmo tempo forte, funcional, ágil e consistente para prover um espaço seguro, permanentemente seguro. É preciso que tenhamos políticas públicas estruturantes, para que a população não dependa apenas da boa vontade da comunidade. Por mais que os inúmeros casos de solidariedade altruísta sejam positivos e absolutamente necessários em tempos extremos, as doações da sociedade civil não são sustentáveis a longo prazo, indefinidamente. Precisamos também de uma sociedade civil que compreenda seu papel e que participe do processo de democratização do Estado.


Referências

AUGÉ, Marc. Los no lugares. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000.

BRASIL. Legislação Federal Brasileira. Disponível em: <https://legislacao.presidencia.gov.br/#>. Acesso em: 21 mai. 2024.

GAIGER, Luiz. A descoberta dos vínculos sociais: os fundamentos da solidariedade Ed. Unisinos, 2016.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. Boitempo Editorial, 2019.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

STIGLITZ. Joseph. “Prefácio”. In: Polanyi, K. A Grande Transformação: as origens políticas e económicas do nosso tempo. Lisboa: Edições 70, p. 9-37.