terça-feira, 13 de junho de 2023

 

13 de junho, dez anos depois 


Na semana passada, publicamos na Agência Pública um bacaníssimo especial sobre a década em que o Brasil foi às ruas. Estamos à beira de 13 de junho de 2023, dez anos depois da manifestação que marcou a história do Brasil para sempre. Desde então, o “gigante acordou” e não mais dormiu, os brasileiros foram às ruas – sejam de direita, sejam de esquerda, sejam de extrema direita ou abertamente golpistas. 

Não há como nós, jornalistas, abster-nos de refletir sobre essa jornada, e sobre como o que vivemos ainda hoje é fruto daquela catarse. 

Há algum tempo as tecnologias da informação deixaram de nos trazer esperanças para, em vez disso, criar angústias. Mas houve uma época em que não era assim, e essa época está na raiz de tudo o que estamos vivendo hoje. 

Doze anos atrás, o mundo vivia um período de profunda expansão da disrupção que a internet causaria. Eu vivi isso muito de perto. O fenômeno do WikiLeaks, um grupo de ativistas, jornalistas e desenvolvedores, surpreendeu o mundo todo ao publicar vazamentos massivos de informações enviadas por cidadãos que estavam cansados de serem manipulados pelos seus governos. Como vocês sabem, eu participei disso como jornalista convidada por Julian Assange para coordenar o vazamento dos documentos brasileiros. 

E vi de perto a potência revolucionária que aqueles dias traziam. Na época, havia um enorme movimento pelo compartilhamento livre de informação, pelo copyleft – modelo de direito autoral que estimula a cópia e a distribuição em vez da concentração – pela criação de blogs e perfis que ajudavam a espalhar informações que antes não tinham espaço para entrar no debate público. E pela facilidade de coordenar manifestações e ações políticas pelas redes sociais.  

Isso era especialmente potente no Brasil, onde a mídia sempre foi muito concentrada, com seis famílias controlando a maior parte do mercado e o modelo preponderante tendo sido, sempre, o comercial. Lembremos que não temos um sistema público pungente e que a EBC sempre sofreu ataques dos mesmos grandes grupos econômicos. Qualquer tentativa de estabelecer um canal como a BBC, por exemplo, é taxado de “censura” ou “manipulação” dos políticos da vez.  

No começo dos anos 2010, houve uma explosão de novos meios de comunicação digital. A Agência Pública nasceu neste momento de expansão e otimismo; temas como machismo, racismo, a questão indígena, conflitos de terra, raramente apareciam nos jornais. Havia um apetite da população por histórias que falassem dessas questões, mas o jornalismo tradicional, ainda dominado pelos mesmos atores de sempre, não enxergava isso. Esse jornalismo digital usou muito as redes sociais como o Facebook para dar visibilidade a esses temas. 

Por outro lado, a expansão da internet permitia outra coisa: a promessa era que agora todo mundo poderia entrar no debate público. Passamos de um modelo de comunicação massiva onde alguns experts diziam o que importava e o resto recebia, passivamente, para um modelo em que todo mundo fala com todo mundo, e portanto qualquer um pode (em teoria) influenciar o seu destino e o destino da sua comunidade e do seu país. 

A primeira expressão disso foram os protestos massivos que ocuparam praças no mundo todo, e até derrubaram governos, como na Primavera Árabe; e ocuparam também o centro do poder financeiro mundial com o Occupy Wall Street. 

Aqui no Brasil, esses ventos de libertação chegaram com os protestos de maio de 2013. Era o sentimento que a internet aproximaria e daria poder às pessoas como nunca antes. 

De certa forma, isso aconteceu. Surgiram ali novos políticos, ativistas, movimentos e influenciadores. Nasceu também uma geração de meios digitais fundados por jornalistas que trouxeram para as suas pequenas redações independentes algumas das inquietudes que tinham em jornais maiores, onde havia temas que não eram abordados, onde as decisões seguiam sendo tomadas por um grupo pequeno – e homogêneo – de executivos, a grande maioria homens e brancos. 

Surgiram mídias feministas, de jornalistas negros, sites investigativos, sites locais independentes, coletivos que se especializaram em transmitir protestos ao vivo, como o Midia Ninja, uma das grandes estrelas de 2013. 

Aos poucos, nós, que fundamos meios nessa explosão do começo dos anos 2010, percebemos uma enorme mudança no mundo digital. A internet se plataformizou, como já discutimos nesta newsletter tantas vezes. Google, Facebook/Meta, Amazon, Twitter, TikTok, se tornaram verdadeiros atravessadores de tudo o que é falado entre os seres humanos. E como são uma praça pública na qual está todo mundo, nós, jornalistas, quem produz informação de maneira profissional, temos que estar lá. 


 

Se antes chegávamos ao nosso público tranquilamente através das redes sociais, essas empresas decidiram que fazia mais sentido reduzir o alcance do nosso jornalismo e cobrar mais para entregá-lo ao nosso público.  
  

A plataformização da internet significou ainda que o debate público é norteado pelos algoritmos que premiam o que gera ódio, o que gera êxtase, o que gera escândalo. E isso é bem o oposto do que deveria ser o bom jornalismo. 

O bom jornalismo tem de explicar as coisas, tem de investigar as coisas e gerar uma conversa. Conversa, diálogo, debate, são cada vez menos presentes nas plataformas de redes sociais – como sabemos, isso não é por acaso, mas pelo design das plataformas ultracapitalistas que querem apenas manter o leitor grudado na tela pelo máximo de tempo.  

Se as camadas de controle que transformaram a internet num oligopólio são invisíveis, duas potencialidades estão à vista de todos. Por um lado, a chama, a demanda por participação, por voz, por uma democracia mais inclusiva – o combustível para as jornadas de junho – segue viva. 

Por outro, a revolta contra as instituições e sistemas que tradicionalmente impediram essa voz. 

São esses os sentimentos que têm impulsionado o crescimento de movimentos extremistas no mundo todo. 

Quem melhor se aproveitou dessa mistura de fomento ao ódio pelo algoritmo que quer nos manter presos nas redes sociais e o desejo de ser sujeito da própria história foi a extrema direita. 

Aprendendo a fomentar o escândalo e a revolta, as gangues digitais trabalham cotidianamente para pautar o debate, perverter a agenda pública e corroer a democracia para dar espaço a governos autoritários impulsionados por grupos militantes fanatizados. São incansáveis.

Essa é uma das raízes do bolsonarismo no Brasil. E atacar o jornalismo, como se ele fizesse parte das instituições que geram essa revolta, faz parte dessa estratégia. 

Há que se admitir que a indústria das Fake News, organizada e bem financiada, consegue entregar o que até hoje nós, jornalistas, não conseguimos: uma certa participação social.  

A promessa das Fake News é permitir ao sujeito “desvendar” por si mesmo a verdade escondida por supostas elites manipuladoras. As Fake News são participativas, enquanto o jornalismo, em que pese todas as transformações da última década, continua sendo um processo de entrega unilateral, dos jornalistas para o público. 

Assim, o que o bolsonarismo entrega é a ilusão de uma autodeterminação. Mas é uma ilusão tão real, tão excitante, que leva pessoas a cometerem atos de violência e crimes, como vimos na invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. 

É uma manipulação perigosíssima à qual, temo, o jornalismo ainda não conseguiu compreender e muito menos se opor. 

Muitas vezes, pelo contrário, ao impulsionarmos notícias em busca de clicks, ou até fofocas, irrelevantes sobre figuras da extrema direita – passeios da família Bolsonaro, por exemplo –, estamos apenas fomentando o circo. A política se tornou também espetáculo participativo.

Por isso, o jornalismo nesse cenário de acosso à democracia precisa ser reflexivo. O jornalista tem que se perguntar a todo momento o que importa ser falado, o que não merece receber atenção – isso se chama “silêncio estratégico” – e o que tem que ser explicado de novo e de novo ao público. 

Agora, defender a democracia, explicar a democracia, é a tarefa cotidiana de todo jornalismo que se pretende sério.

Tenho receio de, assim como aconteceu ao longo desses últimos dez anos, em que deixamos o 13 de junho “na geladeira” como se nunca tivesse acontecido, estarmos vendo nossa memória coletiva rapidamente esquecendo dos seríssimos eventos golpistas, terroristas e de sabotagem das eleições que ocorreram apenas 5 meses atrás. 

Mas, se há um remédio para isso, ele se chama jornalismo. Por isso, fecho a newsletter de hoje recomendando a reportagem de Allan de Abreu na Revista Piauí mostrando que há mais digitais de militares na tentativa de golpe do que imaginamos. Antes de pensarmos num futuro, ainda temos muito o que descobrir sobre nosso recente passado.


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

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