por Julia Dolce | Fotos de José Cícero da Silva | Infográficos de Bruno Fonseca
Um dos conflitos agrários mais tensos de Rondônia envolve 31 mil
hectares de terras da União na zona rural de Candeias do Jamari e foi
gestado, segundo as autoridades consultadas pela Agência Pública, com a ajuda do Incra, o órgão agrário que deveria democratizar o acesso à terra no país e mediar os conflitos no campo.
“É um local muito complicado. Para evitar o conflito, o
Incra falou [para os fazendeiros que adquiriram as terras da União]:
‘Vocês ficam aí por enquanto, e a gente decide se vocês vão ter direito a
essas terras depois’. E nesse meio-tempo criou o assentamento”, diz o
procurador regional dos direitos dos cidadãos em Rondônia, Raphael
Bevilaqua. Placa marca entrada do Projeto de Assentamento Flor do Amazonas, tomado por fazendeiros. | Foto: Julia Dolce/Agência Pública
O projeto de assentamento (PA) em questão é o Flor do Amazonas,
criado há mais de dez anos pelo órgão agrário. Nessa terra pública,
segundo o procurador, funcionários do Incra participaram diretamente da
privatização ilegal ao forjar documentos para a venda das terras. “A
mais famosa é praticada por um servidor que dá declaração de posse para
as pessoas, um documento que não existe oficialmente”, diz.
Bevilaqua se refere ao servidor Eustáquio Chaves Godinho, que
ingressou no funcionalismo público como técnico agrícola em 1973. Em
dezembro de 2005, agentes da Polícia Federal de Brasília prenderam
Eustáquio na operação Terras Limpas — ele foi acusado de participar de
uma quadrilha que transferiu cerca de 1 milhão de hectares de terras do
Estado a partir da emissão de documentos falsos. Procurador Raphael Bevilaqua, do MPF de Rondônia. | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre as terras
supostamente vendidas por Eustáquio e por um ex-superintendente do
Incra, estão áreas do Flor do Amazonas.
Apesar das acusações, Eustáquio foi inocentado em 2012, quando a
Justiça acatou o argumento de que as interceptações telefônicas
utilizadas como prova seriam ilegais. Readmitido no Incra em 2012, o
servidor ocupou até novembro deste ano o cargo de chefe da divisão de
Ordenamento da Estrutura Fundiária.
A história, citada como “exemplo emblemático” no relatório final da CPI da Grilagem,
de 2001, registra que o Incra contribuiu “para dificultar a destinação
das terras para assentamento de pequenos e médios agricultores”, caso do
agricultor Amado Pedro da Silva, 68 anos, que recebeu nossa reportagem
em novembro passado, em seu lote de 70 hectares no Flor do Amazonas.
“Sou amado por todos, menos pela Masutti”
O
agricultor Amado Pedro da Silva vive há mais de dez anos em seu lote,
destinado à reforma agrária. | Foto: José Cícero da Silva/Agência
Pública
De chapéu de palha, jeans, facão na cintura e um smartphone aberto na
função de vídeo, Amado registra um trator arando seu lote, que ele
mostrava à reportagem.
O veículo é do maior grupo sojicultor da região, a Masutti, que
disputava com ele aquele pedaço de chão — num imbróglio fundiário que
remonta à década de 1970. À época, a terra foi alienada pelo governo
militar para a Agropecuária Industrial e Colonizadora Rio Candeias
(Agrinco Candeias Ltda.), no que se tornou a fazenda Urupá. Seu Amado filma funcionário do Grupo Masutti arando sua terra. | Foto: Julia Dolce/Agência Pública
A alienação das terras era estimulada pelo governo para a colonização
da Amazônia, mas a Urupá não cumpriu obrigações previstas em contrato e
a terra foi retomada na Justiça pelo Incra 34 anos depois. O problema,
explica Josep Iborra Plans, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), é
que a Agrinco Candeias loteou e vendeu as terras para outros
fazendeiros ilegalmente durante o período.
No
Cadastro Ambiental Rural (CAR), o lote de Amado encontra-se sobreposto a
outra inscrição, de 623 hectares, em nome de Antônio Aparecido da
Silva, conhecido como Toninho da Câmara, que alega ter comprado 1.400
hectares da fazenda Urupá, em 1987 e vendido aos Masutti em abril deste
ano.
Seu Amado conta que chegou ao PA em 2008 e foi cadastrado pelo Incra
para ser assentado no Flor do Amazonas IV (a região do PA é dividida em
quatro módulos). Devido à lentidão, Amado se mudou em 2009 para o atual
endereço — o lote 105 do Flor do Amazonas II.
À reportagem, Amado mostrou, além da certidão assinada pelo então
superintendente regional do Incra/RO Luiz Flávio Carvalho Ribeiro, na
qual consta seu registro no Sistema de Informação de Projeto de Reforma
Agrária (Sipra) como acampado do Flor do Amazonas, os documentos da
própria inscrição como candidato ao Programa Nacional da Reforma
Agrária. Certidão de inscrição de seu Amado no Incra
Mas, de acordo com a ouvidora-geral da Defensoria Pública de
Rondônia, Valdirene Oliveira, a falta de documentos de Amado sobre a
terra tornou a situação juridicamente difícil. Ela se refere à certidão
de beneficiário da reforma agrária, documento que nunca foi dado a
Amado, uma vez que o Incra ainda não deu seguimento ao processo de
assentamento. Já a Masutti, possui os documentos de aquisição e
propriedade das terras.
Contatado pela reportagem, Marco Lima, responsável pela gestão
ambiental da Masutti, afirmou que pelo conhecimento da empresa toda a
área do Flor do Amazonas II, na verdade, pertencia a Toninho da Câmara.
“A gente comprou uns 700 hectares de terras dele. O seu Amado invadiu,
assim como outros.”
Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em abril de
2019 funcionários da Masutti compareceram nas casas de outros
agricultores do lote 105 do Flor do Amazonas, acompanhados de
pistoleiros conhecidos na região e propondo comprar as terras. Valdirene Oliveira, ouvidora geral da Defensoria Pública de Porto Velho. | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Na ocasião, de acordo com Amado, foi deixado um cartão de visitas do
analista de compras da Masutti, Fábio Morawski. Contatado por telefone
pela reportagem, Morawski, em uma primeira ligação, confirmou que esteve
no Flor do Amazonas propondo comprar as terras dos posseiros —
questionado novamente, afirmou que nunca esteve na região.
Segundo a agente da CPT Ana Maria Delazeri, as empresas de soja têm
entrado no Flor do Amazonas também por meio de ameaças e encurralamento
dos pequenos agricultores. “Eles ficam com medo de perder a vida e
acabam deixando a terra, assim os sojeiros tomam conta. O latifúndio
consegue as declarações, os comprovantes dos órgãos competentes com mais
facilidade do que os pequenos agricultores”, diz Delazeri.
Ela destaca que a área do Flor do Amazonas é visada pelas empresas de
soja por se tratar de uma terra plana e bastante produtiva, com fácil
acesso, por ser próxima à capital do estado e, consequentemente, ao rio
Madeira, por onde o grão é escoado.
“É covardia deles mexerem com um velhinho da minha idade”
Árvores ainda queimam após incêndio provocado pelo Grupo Masutti no lote de seu Amado. | Foto: Julia Dolce/Agência Pública
Amado conta que sofria pressões da Masuti anteriormente e de Toninho
da Câmara. O agricultor mostrou à reportagem um vídeo de uma abordagem
policial na qual o agente, acompanhado de funcionários da Masutti, o
questionam sobre sua permanência na terra.
“Falaram que eu não tinha direito de descer para parte de baixo do
lote. Eu falei que tô aqui há dez anos e cinco meses, todo arrebentado
de trabalhar e conheço meu direito. É covardia deles mexerem com um
velhinho da minha idade”, completou, em frente à sua casa de madeira.
Além da visita policial, Amado denuncia que, desde que a Masutti
entrou no Flor do Amazonas, foi abordado por quatro pistoleiros armados,
um deles se apresentando apenas como “Chicão”. “Disseram que, se eu
passasse daquele arame para baixo, eu podia me transformar no retrato da
mãe deles, que eles metiam bala mesmo assim”, afirmou.
No mês seguinte à visita da reportagem, a persistência de Amado foi
vencida. “O seu Amado estava sendo sufocado ali porque já prepararam o
terreno para plantar, o uso de agrotóxicos já estava comprometendo sua
saúde. Ele ficou bastante abatido e quis desistir”, explicou a ouvidora
da Defensoria Pública. Valdirene afirma que a filha de Amado, preocupada
com a vida do pai, o incentivou a aceitar um acordo de R$ 250 mil
oferecido pela Masutti na Justiça. “Não queriam que ele permanecesse na
área em função do risco de vida, já que há algumas ameaças.”
Juca Masutti é filho de ex-prefeitos de municípios do Mato Grosso;
sua mãe, Claídes Lazaretti Masutti (MDB), teve o mandato cassado por
abuso de poder econômico nas eleições municipais de 2008. O próprio Juca
chegou a ser cotado na imprensa regional como um possível candidato ao
governo de Rondônia, devido à sua grande influência no estado, mas
desistiu na última hora para apoiar o atual governador, Coronel Marcos
Rocha (PSL). Além de plantar soja e milho em 60 mil hectares de terras
rondonienses, o empresário é presidente regional da Associação
Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja). Juca Masutti e Bolsonaro. | Foto: Reprodução
A única renda e fonte de subsistência de Amado vinha de sua produção
de alimentos como mandioca, abacaxi, batata-doce, caju, manga e banana.
“Eu não consigo sobreviver na cidade. Minha saúde vem da natureza, se eu
sair daqui, vou morrer rápido”, disse o agricultor antes do acordo.
No dia 9 de dezembro de 2019, pouco mais de um mês após receber a Pública,
Amado voltou a falar com a repórter por telefone. Ele conta que adoeceu
desde o acordo com a Masutti. “Eu perdi uns 5 quilos, minha pressão
chegou a 18 por 8. Foi muita emoção. Mas tava todo mundo me falando que a
vida vale mais que a terra”, contou, com a voz embargada. O agricultor
cogita mudar de estado, para uma gleba em Cuiabá, onde vive sua irmã.
Seu
Amado mostra a casa de madeira em que vive há dez anos, dentro do
Projeto de Assentamento Flor do Amazonas. | Foto: Julia Dolce/Agência
Pública
Seu Amado desenha no chão tamanho original de seu lote. | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Seu Amado procura documentos. | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
A inusitada visita ao Incra de Rondônia
Para parte dos camponeses ouvidos pela reportagem, bem como para a
Procuradoria da República em Rondônia (MPF-RO) e a Defensoria Pública de
Porto Velho, a origem dos conflitos que atingem camponeses como Amado
reside na negligência e corrupção no próprio Incra.
Em busca de informações sobre a situação do PA Flor do Amazonas, a Pública agendou uma entrevista com o superintendente regional de Rondônia, Erasmo Tenório Silva, na sede do órgão em Porto Velho.
Mas o que deveria ser uma entrevista com o superintendente se
transformou numa reunião com vários servidores — entre eles, Eustáquio
Chaves Godinho, citado no início da reportagem. Da
esquerda para a direita: Eustáquio Chaves Godinho, Waldomiro Barros e
Erasmo Tenório da Silva, funcionários dispensados do Incra, durante
entrevista com a Agência Pública. | Foto: José Cícero da Silva/Agência
Pública
Ao falar, o superintendente regional disse não existirem conflitos no
Flor do Amazonas. Para ele, a área do pequeno agricultor Amado não é
particular para “vir um investimento desse aí [Masutti]”, e declarou que
o Incra deveria apenas aguardar o “desenrolar do processo”.
Já
Eustáquio afirmou que a Masutti, Toninho da Câmara e todos os demais
fazendeiros que hoje colecionam hectares dentro do Flor do Amazonas
adquiriram as terras da União “de boa-fé”. “A força era muito pacífica,
agora que essas terras estão sendo invadidas para explorar as áreas
produtivas”, opinou sobre os sem-terra que acampam no Flor do Amazonas à
espera do assentamento.
Em determinado momento, o funcionário público afirmou que eles, os
sem-terra, eram os responsáveis por “desflorestar a mata”. “O que mais
tem é isso aqui, invasões, literalmente invasões. Eles entram e desmatam
a floresta”, disse, sem mostrar provas para sua afirmação.
Outro funcionário, o técnico de contabilidade Waldomiro Barros,
interveio após a declaração. Disse que Eustáquio não estava “afirmando”
tais acusações sobre os sem-terra, e sim “comentando”. Questionado,
Eustáquio disse ainda que sua prisão e seu afastamento foram
consequência de perseguição política.
Eustáquio falou também sobre a assinatura de outro documento
inexistente para privilegiar uma ação de reintegração de posse por outra
fazendeira, Marselha Rita Serrate Araújo, que entrou com a ação contra
cerca de 80 famílias sem-terra organizadas em um acampamento nomeado
como Boa Sorte, também no PA Flor do Amazonas. Acampados
do Acampamento Boa sorte debatem sobre nova ação de reintegração de
posse. | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
No documento assinado por Eustáquio, ele afirma: “pretensos invasores
apoderaram-se do aceiro interno dos limites das propriedades e ali
instalaram minguados barracos com cunho basicamente especulativo,
sobrepondo áreas de pastagens já consolidadas conforme observado nas
imagens de satélite”. Em sua decisão ele escreveu: “não há interesse do
Incra sobre as áreas em questão”.
A afirmação sobre o interesse ou não do órgão pelas terras, de acordo
com o MPF, não estaria sequer na competência de Eustáquio, cabendo a
análise apenas ao superintendente regional do Incra, na ocasião Erasmo
Tenório da Silva. Documento de negativa do Incra. | Foto: Reprodução
Mesmo tendo seu documento lido na íntegra pela reportagem, Eustáquio
negou que tenha se posicionado sobre o interesse nas terras da União e
disse que, na verdade, havia sido mal compreendido, pois havia escrito
apenas que o Incra não tinha interesse em se manifestar sobre o
processo.
A entrevista foi encerrada após Waldomiro e o superintendente Erasmo
terem reclamado de um suposto enviesamento da reportagem em benefício
dos pequenos agricultores.
Três dias após a entrevista, Eustáquio, Erasmo e Waldomiro foram dispensados de seus cargos no órgão, conforme publicado no Diário Oficial da União.
De acordo com a assessoria de imprensa do Incra nacional, a
Corregedoria-Geral do Incra (CGE/Incra) “afastou cautelarmente” os
funcionários de suas funções por meio de uma medida administrativa
cautelar, e tal medida visa “resguardar apurações disciplinares em curso
na Regional”. Questionada sobre a relação entre as denúncias de
corrupção envolvendo os funcionários, a recomendação do MPF e o
afastamento, a Corregedoria respondeu, apenas, que o processo é
sigiloso.
Apesar do afastamento dos funcionários, o Incra segue sem se
pronunciar sobre a expulsão de beneficiários da reforma agrária do PA
Flor do Amazonas. A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei,
que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à
demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial
também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma
brasileiro. Reportagem originalmente publicada na Agência Pública
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